Marieta e o Oceano

Segipe Couro Marieta

Marieta é uma mulher nordestina, miúda, de traços delicados, fala mansa e cantada, gestos precisos e um olhar perfurante, que parece dissecar, com argúcia, tudo e todos que se encontram em seu campo de visão. Sem arroubos, sentada em sua cadeira de madeira que mantêm em sua cozinha, de assento confortável e abas largas, ela conta para o jovem casal de gringos americanos, que a descobriram através do Lonely Planet, como ela se tornou a maior doceira da cidade de Sâo Cristóvão. Os dois jornalistas da New Yorker, que vieram ao Brasil para coletar memórias e histórias de líderes de seitas e religiões afro-brasileiras, resolvem, a caminho de Laranjeiras, cidade colonial onde se concentrou o maior número de engenhos de açúcar no século XIX, berço da religião nagô, fazer um pequeno desvio da rota planejada para que pudessem provar as tais “doçuras de Marieta”, considerado, pelo guia, um dos maiores atrativos da cidade, conhecida também pelosuntuoso conjunto arquitetônico colonial, que lhe rendeu o título de Patrimônio da Humanidade, outorgado pela Unesco, em 2010.

Orgulhosa por ter conquistado, ao longo dos anos, a confiança e admiração do povo são-cristovense, que a tratam como uma espécie de embaixatriz informal da cidade, Marieta construiu sua fábrica artesanal de gostosuras brasileiras na praça central, bem em frente à Igreja Matriz. Mesmo o mais desavisado turista, não escapa aos encantos visuais e feitiços olfativos dos confeitos de Marieta, já que seus doces, como pequenas jóias, ficam expostos em papeis laminados recortados artesanalmente, em enormes vitrines de vidro, em frente à sacada das grandes janelas coloniais de sua casa. Quando um visitante ou transeunte bate palmas, lá vem um de seus filhos, com o mesmo ar delicado e austero da mãe, atender seus potenciais clientes, fazendo questão de servir e também explicar o processo de feitura de cada um das “joinhas”, passadas de geração em geração pela família Santos, há mais de seis décadas.

Greg e Stancey deleitados com a exuberância visual e sabores que nunca antes tinham sequer suspeitado que pudesse existir esticam a permanência na cidade. Como duas crianças salivando defronte de um pote suculento de chocolates, balas e sorvetes, fazem questão de experimentar e levar com eles um exemplar de cada um dos itens do acervo culinário de Marieta - cocadas de todas as cores e texturas, paçoca em barra e como farinha, o doce de leite em pasta, os doces de fruta em calda embalados em belos vasilhames de vidro, as bolachinhas de leite, a famosa bala de ovo.  Como jovens jornalistas ocidentais, ávidos pela diversidade e multiplicidade de expressões culturais do mundo, pedem ao filho de Marieta, que se sentiriam honrados em conhecer a “fada” de São Cristóvão, autora de, segundo eles, uma das sete maravilhas da humanidade no quesito gastronômico.

Apesar da falta de destreza com a língua portuguesa, o casal, que despertava confiança e esbanjava entusiasmo, leva o filho de Marieta autorizar a entrada dos dois no templo sagrado de sua mãe, a cozinha. Ao adentrarem no ambiente, simples e suave, sentem como um golpe de vento a sabedoria secular de mais de 60 anos contínuos, que transpira nas paredes, nas panelas, nas formas e no forno, sempre em atividade, sem trégua e sem distração um único dia sequer.

Com seu radar sensível, ao apresentar-se como “Marieta, a seu dispor”, estabelece uma rápida empatia com os jovens e, ao ser interpelada pelos dois como havia se tornado uma espécie de celebridade local, citada internacionalmente, Marieta dispara a falar, quase sem intervalo entre uma respiração e outra, de onde havia saído, como foi à travessia de seu “oceano” e como havia conseguido chegar em terreno firme, possibilitando, assim, que seus filhos crescessem, estudassem e prosperassem. Embevecidos pela sabedoria sertaneja daquela mulher doce e, ao mesmo tempo, austera, que esboçava um sorriso tímido a la Monalisa quando falava de sua capacidade de superação, os dois jovens colocaram-se à sua escuta, de forma integral, entregues a um enredo que parecia ficcional, de tão espetacular.

Marieta ao falar sobre a sua história olhava e apontava insistentemente para o morro, que Greg e Stancey podiam avistar, sem nenhum esforço, da janela da cozinha. Era ali, há poucos metros de distância, onde Marieta nasceu, viveu a infância/adolescência e início de juventude, ao lado dos avós, ex-escravos, pais e irmãos menores. Apesar da proximidade física e da beleza de seu traçado, o morro, segundo Marieta, era o cárcere de sua família, local de onde eles todos jamais pensariam um dia ser capazes de deixar e transpor. O paradoxo do universo doce criado pela avó, pela mãe e por Marieta era contraposto à aridez de suas lembranças e à dureza de suas experiências reconstituídas através de fiapos, restos e quase nada que tivesse algum sentido e valor. Como um refrão reincidente que atropelava o seu desejo de clarear e pacificar o relato, Marieta cantava com uma vozaguda de dor não cicatrizada: “Como é que podíamos participar das festas da cidade, como é que podíamos estudar, como é que podíamos celebrar o Natal, como é que podíamos fazer compras na mercearia da cidade, como é que podíamos tomar um sorvete na Praça da Matriz? Todo momento éramos lembrados, de forma impiedosa, da nossa miséria e da nossa inexistência”

Imagens da escravidão, da alforria, do desterro, da miséria, da resistência, das estratégias de sobrevivência aparecem em efeito cascata enquanto Marieta rememora e Greg e Stancey acompanham sua trajetória.

 Como em um enredo épico, Marieta muda a chave de seu discurso, pontuado até aquele momento por todas as faltas e carências – as pedrinhas e folhas que serviam de entretenimento entre as crianças, os restos de revista encontrados ao léu pela cidade e que serviram como recurso didático para ensinar seus irmãos a lerem, um único picolé partido em sete na noite de Natal, o trabalho sem intermitência quebrando e ralando o côco, etc,etc. A partir daí, lembra o momento da virada, o momento que, segundo ela, com muito esforço e obstinação, com e através dos doces, sua família atravessa o oceano a braçadas. A imagem desta descida, que representa, na verdade uma elevação, aparece em sua narrativa como uma redenção, um triunfo da força e da vontade. Mas a beleza doída do relato, que enreda os dois ouvintes imberbes, é que o morro permanece como sombra, como fantasmagoria, como obstáculo à singela experiência da alegria, que passa à margem de Marieta e seu oceano.

 “Eramos muito pobres, éramos muito pobres, éramos muito pobres”, este refrão pontuava a narrativa sobre sua vida