Escuridão

“Pobre, desprovido, miserável, infeliz, ignorante, estúpido, burro, subdesenvolvido, desqualificado, analfabeto, pobre coitado, lixo”.

Diariamente ele era golpeado, sem misericódia, pelas poucas palavras que realmente conhecia do dicionário. Eram estas qualidades que ecoavam, sem um minuto de trégua, ao longo daqueles seus muitos anos, que ele, na verdade, não sabia bem ao certo quantos eram, e que esquadrinhavam o apertado horizonte que era capaz de enxergar.

Se a pecha da ignorância era um fardo duro de arrastar, pior chaga do que esta, só mesmo a de vagabundo, desempregado. A única maneira de arrebentar a fronteira deste seu cercado de insucessos era com determinação de quem “atravessa o oceano a braço”, como ele ouvia as pessoas falarem. Era um homem que ouvia muito.

Tinha mais uma qualidade que nem ele próprio sabia, nem, por outro lado, ninguém nunca destacava: perseverança. Não desistia no primeiro nem no décimo nocaute que a sua vida miúda lhe dava, sem clemência. Na hora das entrevistas, com a segurança frouxa de quem sabe da fragilidade da sua casca, ele dizia:

- Sim, me formei até a 4 série, minha mãe não estudou não...Fez muito sacrifício e graças a ela eu e meus irmão fomo até o final, graças a deus. Na hora de assinar o nome, este sim o momento de maior desamparo, o certificado definitivo da escuridão de seu trajeto, contorcia-se da cabeça aos pés e com o auxílio de uma força que acreditava ser divina conseguia produzir alguns garranchos onde o a,e, i, ou e u podiam ser minimamente reconhecíveis.

Em uma das manhãs indiferentes como todas as outras, foi acordado por uma voz que gritava com ferocidade em seus ouvidos: “Vem vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer” . Estranhou a novidade do refrão, muito diferente daquela outra estrofe que aparecia nunca lhe desertar “pobre, desprovido, infeliz, ignorante, estúpido, burro, subdesenvolvido, desqualificado, analfabeto, pobre coitado, lixo” e teve a certeza de que este seria o dia da sua grande travessia oceânica. Confiante de que era o momento doacerto de contas com o seu passado de pobreza e dor,  permitiu  distrair-se da severidade daquela única vida que conhecia e foi em busca deste seu grande mergulho, seguro de que o tal chamado celestial não havia soado em vão.

Depois de matutar sobre suas buscas vãs de emprego do último ano, que o submeteram ao torturante ritual das entrevistas e assinaturas, lembrou de um dinheiro que havia ficado no estrado do colchão e foi em direção a um dos escritórios, umlugar sombrio como todos os seus dias, onde uma semana antes havia preenchido uma ficha para entregador de filipetas. Desta vez, felizmente, ele não precisou repetir o script das dificuldades da mãe, nem a prática contorcionista para que fosse capaz de escrever o seu nome. Todo o seu diálogo com a atendente foi estabelecido oral e visualmente. Certo de que, enfim, ele conseguiria dar uma direção para a sua vida, olhou para aquele catálogo macabro de alternativas de como tornar suave uma morte desejada e falou com a leveza de quem se sente, finalmente, livre do seu fardo hediondo: “Com saco plástico e corda”. O mais simples possível. Pela primeira vez, assinou o seu nome sem se contorcer e saiu caminhando pelas ruas, com seu pacotinho em mãos, atento à vastidão e luminosidade do mundo.