“Meu pai era angolano e gostava de latir. Meu avô foi um comerciante português que colecionava avidamente moedas antigas e jurássicas. Minha tia-avó foi uma cantora lírica virtuosa e fez muito sucesso na Hungria cantando em cerimônias fúnebres. Um primo de minha mãe foi o campeão invicto nos concursos do “glutão velocidade máxima”, grande e único acontecimento cultural de sua cidade”.
Sempre precisei me agasalhar de histórias. Delirantes, bem comportadas, improváveis, melancólicas, repulsivas, engraçadas. Nâo importava muito o gênero, muito menos a sua verossimilhança. Queria mesmo é sua companhia, o barulho, a provocação. Invejava sem pudor colegas da escola que invocavam cinco gerações para trás de antepassados, com orgulho dinástico e pompade quem é um herdeiro sangue azul de qualquer que tenha sido o legado. Desejo de ter sido solapada por uma avalanche de cizâneas, ódios seculares, romances incestuosos, aventuras de cavalaria.... Mas muito longe disso, o que tinha ali, na minha “horta”, eram as evasivas, as reticências. Silêncio impiedoso, sem compaixão. Quando eu lhes perguntava como é que tinha sido a vinda deles ao Brasil, a infância, quem eram seus avós, o nome, a cara deles, meus pais não eram capazes de formular nenhuma resposta, nem uma pobrezinha, satisfatória, que pudesse saciar um pouquinho da minha fome de origem. Este deserto sem saudades de onde saí me transformou em uma vampira de histórias. Onde elas pudessem despontar, estava lá eu, à espreita, pronta para capturá-las para o meu arquivo. Romances e filmes, desde muito cedo, mas também as conversinhas fiadas no cabelereiro, os papos com os motoristas de taxi, os programas de entrevista transmitidos ás tardes, sempre enfadonhos, os obituários de jornais, as revistas de fofoca, tudo, sem juízo de valor, foi entrando na minha coleção secreta que engordava dia-a-dia. Quando me dei conta, já não era mais da falta que padecia. Mas a algazarra, o excesso de vozes, todas exigindo cuidados e lealdade. Talvez,não sei, tenha sido a necessidade de me despedir destas vidas que me perfuraram, o motivo de eu ter me tornado escritora. É engraçado estar falando isso agora para você, acho que esta associação eu nunca havia feito antes.