Delicadeza

— Me ajuda aqui?

— Quer mais?

Inteiro, ele estava ali, inerte.

Nem lembrava mais ao certo, desde quando.

A vida seguia quase sem pontuação, sem cadência. Sua existência tinha ficado mesmo rasa.

A única coisa que ainda vicejava eram seus olhos e sua boca, suculentos por algum tipo de surpresa, por um susto qualquer que interceptasse a expectativa do sempre igual.

Nas primeiras vezes, ao vê-la arrumar seu quarto, com toda calma e diligência, ele não ligou, ficou indiferente.

— Você me pega o celular, por favor?

— Qual é o número que você quer que eu disque?

— Para a minha mãe, tá gravado.

Aos poucos, na medida em que foi percebendo que aquela presença silenciosa estava engordando seus dias, começou a observá-la com mais apuro, com interesse. Os seus gestos mais miúdos, mais repetitivos eram aqueles que mais o atraíam. O jeito que agachava para recolher os papéis, a forma metódica de empilhar os livros, a sobriedade com que posicionava as poltronas, a obsessão pelo enquadramento das gravuras.

Sacudido por esta delicada conexão, a indolência voluntária que o seu corpo impôs ao seu desejo, foi quebrando-se. E, em um daqueles dias aparentemente mornos ao ouvi-la entrar em sua casa para cumprir com o seu ofício, com a retidão de costume, ele foi arrebatado por uma força indomável que restituiu a umidade que seu corpo havia contido. Ela, ao empurrar a maçaneta e abrir a porta de seu quarto, foi recebida por ele com uma expressão mais solar do que o de costume, mas com sua pergunta de praxe:

— Você já chegou?  

A experiência da escrita

Não há, para mim, imagem mais precisa sobre o desejo/prática da escrita do que a ação que o verbo escorchar alude. A escrita é, portanto, um ato voraz de tirar a casca e a carcaça das coisas, raspando, mitigando, triturando e perfurando os seus sentidos. Ela é desejo de superação de fronteiras, de experimentação de territórios, de vínculos insuspeitos. A escrita nunca se coloca como um momento de suspensão, de trégua, de pacificação. Pelo contrário, ela é uma espécie de britadeira nervosa e barulhenta que busca escandir toda e qualquer plataforma uniforme e continente. Ela, para mim, é arar e cultivar terrenos – virgens ou devastados - com as palavras, através de um trabalho ardiloso no âmbito corporal, sensorial e intelectual.

Na e pela escrita consigo roçar com o risco. A escrita é, portanto, um pacto que estabeleço, em absoluto silêncio e sem alarde, com a ousadia.  A devassa por novos territórios – sensíveis e materiais - pela escrita sustenta-se através de um jogo sensual com as palavras, onde busco brincar com suas filiações originárias, levando-as a experimentar novas parcerias e alianças. As palavras, pelas quais manifesto profunda adoração e deferência, são as minhas bússolas e também âncoras que me referenciam no mergulho da escrita.

O trabalho com a escrita é sempre o meu ponto de inflexão, nunca ponto de partida. Resultante de um longo processo de engravidamento e cultivo, a minha escrita materializa-se quando há uma vida prenhe e borbulhante gritando para ganhar existência e lugar. Esta escrita, urdida na pequena distância e em certo silêncio, de forma intermitente, não busca rivalizar nem, por outro lado, reverenciar a vida. A leitura e a escrita, participam, na mesma intensidade e medida, do meu desejo de engordar a leitura sobre o mundo, possibilitando vazar suas excrescências, excessos, camadas e tonalidades. 

História Oral

A dificuldade em definir peremptoriamente a História oral deve-se ao fato dela não pertencer a um domínio estrito de conhecimento. A sua especificidade, ao contrário, é, justamente, a capacidade de prestar-se a diversas abordagens – Antropologia, Sociologia, História e demais Ciências Humanas - e mover-se em um terreno multidisciplinar. Apesar de seu caráter evasivo, há, não obstante, um consenso geral que a define como uma metodologia de pesquisa que produz a sua própria fonte, a partir de entrevistas gravadas com pessoas que participaram ou testemunharam certos acontecimentos, conjunturas, modos de vida, instituições, visões de mundo e outros aspectos da vida – objetiva e subjetiva - que não costumam ser contemplados ou profundamente escrutinados pela documentação escrita. Os depoimentos orais constituem-se, potencialmente, em fontes informativas e/ou instrumentos de compreensão ampla do significado da ação humana.

 A democratização dos atores intitulados protagonistas da história promovida pela História oral, ao valorizar todos os indivíduos, de forma indiscriminada, como depoentes fidedignos, outorgando-lhes o direito de construção de sua versão/sentido da experiência a partir de seus próprios termos é, sem dúvida, o mais contundente argumento que referenda a importância e caráter transgressivo do método. Mas, há também fatores de natureza técnica e metodológica, como o fato de introduzir o pesquisador na construção da versão, permitindo constante avaliação do documento ainda durante sua constituição e ser um arquivo intencional de documentos históricos.

A metodologia de história oral estabelece e ordena procedimentos de trabalho (pesquisa, elaboração de roteiro, produção do depoimento, apontamentos da experiência de campo, transcrição do depoimento, restituição do depoimento ao entrevistado para eventual correção/modificação e produção de um material interpretativo sobre a coleção - livro, exposição, DVD, CD) e, paralelamente, suscita questões engendradas a partir da escuta sensível dos relatos, a serem interpretadas pela teoria da História e demais áreas de conhecimento afins. Funcionando como um espaço intersticial entre a prática e a teoria, a lenta e gradual incorporação da história oral pelo campo historiográfico ampliou, de forma expressiva, o escopo de “objetos” a serem investigados e interpretados. O próprio funcionamento da memória com suas suscetibilidades, contingências e nuances ganhou, com a metodologia, um novo olhar e novas perspectivas de tratamento e análise.